Campeões de Audiência: Irmãos Coragem (1970/71)

Um dos maiores clássicos da teledramaturgia brasileira, a novela Irmãos Coragem terminava há 51 anos como um grande sucesso de público e crítica. Produzida e exibida pela Rede Globo entre 8 de junho de 1970 e 12 de junho de 1971, em 328 capítulos, a novela foi considerada o primeiro grande fenômeno da emissora e responsável por quebrar a hegemonia das telenovelas da TV Tupi, conquistando a inédita liderança na audiência, que se mantém até hoje. Escrita pela genial Janete Clair, com a direção de Daniel Filho (também diretor geral), Milton Gonçalves e Reynaldo Boury, a trama, feita toda em preto e branco, ainda foi responsável por conquistar mais audiência que a final da Copa do Mundo de 1970, um dia depois do fim do campeonato mundial. Um fato incomum e que mostrava o poder das novelas no cotidiano do brasileiro, onde até os homens a partir do folhetim, assumiam que assistiam a obra. Por isso, vale relembrar essa espetacular trama, campeã de audiência crítica e que tinha nomes como Tarcísio Meira, Glória Menezes, Cláudio Cavalcanti, Cláudio Marzo, Regina Duarte e Zilka Salaberry nos papéis centrais.

Duda (Claudio Marzo), Dona Sinhana (Zilka Salaberry), João (Tarcísio Meira) e Jerônimo (Cláudio Cavalcanti) protagonizaram o grande sucesso “Irmãos Coragem”, exibida entre 1970 e 71. (Foto: Reprodução/TV Globo)

Sinopse

A história de “Irmãos Coragem” mostra a luta pela liberdade e contra a opressão dos irmãos João (Tarcísio Meira), Jerônimo (Cláudio Cavalcanti) e Duda (Claudio Marzo). Eles moram na fictícia cidade de Coroado, no cerrado goiano, onde a principal atividade econômica é o garimpo. A narrativa começa quando João Coragem, um homem rude, simples e generoso, que trabalha de maneira honesta como garimpeiro, acha um valioso diamante que é furtado pelo Coronel Pedro Barros (Gilberto Martinho), que controla com pulso firme o comércio de garimpo de Coroado e é o homem mais poderoso da cidade, fazendo as suas regras virarem lei. Mesmo sendo um homem pacifico que busca resolver tudo na conversa e dentro da legalidade, João torna-se um foragido da justiça depois de diversas injustiças no local, comandando o seu próprio bando de garimpeiros desvalorizados, e começa a usar da sua força para confrontar o próprio Coronel Pedro Barros, seu principal rival. Porém, João conhece e se apaixona pela tímida e retraída Lara (Glória Menezes), a filha enferma do Coronel, que não sabe da doença da filha. A jovem possui outras duas personalidades: a radiante e selvagem Diana, de comportamento avesso ao de Lara; e o oposto das duas, Márcia. Essas mudanças repentinas de personalidades confundem ainda mais a cabeça de João que inicialmente não entende o problema enfrentado por sua amada.

Por sua vez, o jovem Jerônimo nutre uma paixão escondida por sua irmã de criação, a indígena Potira (Lúcia Alves). A moça, para tentar esquece-lo, concorda em se casar com Rodrigo César (José Augusto Branco), que batalha ao lado dos Coragem no conflito contra o Coronel Pedro Barros. Para auxiliar o seu irmão a enfrentar o seu algóz, Jerônimo entra para política através de um partido da esquerda, com o intuito de terminar com os abusos do coronel. O rapaz, ainda, para fugir do sentimento que sente por Potira, casa-se por interesse com Lídia Siqueira (Sônia Braga), a filha do deputado Dr. Siqueira (Fernando José).

Glória Menezes (imagem à esquerda) interpretou Lara na trama de Janete Clair. A atriz ainda encarnou mais duas personalidades distintas no mesmo papel: Diana e Márcia. (Foto: Reprodução/TV Globo)

O terceiro irmão, Duda, é o caçula de João e Jerônimo. Um rapaz que deixou para trás a cidade, a família e o seu amor de infância, Ritinha (Regina Duarte), para conquistar o seu maior sonho que era se tornar um jogador de futebol. Ritinha, uma boa moça, vai precisar batalhar pelo seu amor quando Duda retorna a Coroado, pois ele se envolveu com outra mulher enquanto estava fora, a bela Paula (Myriam Pérsia), que pretende fazer o impossível, se for preciso, para ficar ao seu lado. O problema aumenta quando Ritinha dorme com Duda, sem “segundas intenções”, e mesmo sem ter ocorrido coisa alguma, o pai dela, Dr. Maciel (Ênio Santos), que nunca foi com a cara do rapaz, o impele a se casar com a sua filha.

Trama Paralela

Um dos grandes destaques da novela foi Juca Cipó (Emiliano Queiroz). No decorrer da obra, ele descobre que é um filho bastardo de Pedro Barros com Domingas (Ana Ariel), nascido de uma relação que os dois tiveram quando eram mais jovens. Ela possuía apenas 15 anos quando engravidou. Com medo de ser mãe solteira, a moça se desfez do bebê, sem saber que a pessoa que o adotou o devolveu ao pai, justificando que o menino tinha problemas de ordem mental e lhe dava várias despesas.

Domingas nunca teve coragem de confessar a Juca que era sua mãe. Ele foi criado sem quaisquer noções de ética e moral, rodeado pela barbárie causada pelo Coronel, e sem nenhum tipo de afeto familiar. Por conta disso, além da debilidade mental, ele ainda cresce com uma conduta violenta e passa a cometer delitos graves. Juca assassina o prefeito de Coroado, Jorginho (B. de Paiva) e, mais tarde, estupra Cema (Suzana Faini) quando invade à casa dos Coragem.

Sua jornada problemática muda somente depois que Pedro Barros expulsa de casa a mulher Estela (Glauce Rocha), e convence sua mãe Domingas a ir viver com ele. Ela, então, conta a verdade a Juca e passa a zelar pelo jagunço que, mesmo que goste do carinho maternal, não a quer como mãe e muito menos aceita saber que é filho de Pedro Barros. O rapaz preferia que ele fosse somente seu patrão. Mesmo com essa narrativa sombria, o personagem consegue constituir uma família no final da obra e se tornou amável com o decorrer do enredo, conquistando assim, a simpatia do público infantil.

Produção

Irmãos Coragem, hoje um clássico da teledramaturgia brasileira, foi a primeira telenovela a possuir uma cidade cenográfica própria para as gravações. A trama também contou com um dos protagonistas sendo um personagem que era jogador de futebol, uma novidade na época.

Para realizar as cenas na fictícia Coroado, o elenco e a equipe de produção da novela enfrentaram diversos obstáculos. Era habitual, inclusive, os atores e produtores se esbarrarem com animais, como cobras e jacarés. Ainda, devido as chuvas, a área ficava completamente alagada, o que também acabava impedindo as gravações. Naquele tempo, não era difícil o elenco ter que passar as madrugadas trabalhando para não atrasar o cronograma de cenas que seriam produzidas no dia.

O cenógrafo Mário Monteiro foi o responsável pela construção do cenário da Fictícia Coroado, numa área de cinco mil m2, na Barra da Tijuca, zona Oeste do Rio de Janeiro. A cidade possuía oito ruas, praça, prefeitura, pensão, farmácia, delegacia, igreja, bares e mercearia. Esse foi o maior projeto cenográfico da televisão brasileira realizado até então.

As cenas feitas no garimpo foram idealizadas, em sua maior parte, na serra de Teresópolis, no Rio de Janeiro.

Lara (Glória Menezes) e Estela (Glauce Rocha) durante cena da primeira versão de Irmãos Coragem. Primeira novela que conquistou mais audiência que uma Copa do Mundo. (Foto: Reprodução/TV Globo)

Apostando em uma narrativa com três homens protagonistas e temáticas masculinas como o futebol, a autora desejava conquistar o telespectador masculino e quebrar o paradigma de que novelas eram feitas somente para mulheres. Em entrevista realizada em 2006 ao site Memória Globo, o ator Tarcísio Meira, intérprete de João Coragem, afirmou: “Foi a primeira novela que os homens admitiam que viam por causa da ação que ela tinha. Até então, eles viam meio escondidos, olhando de canto, com vergonha de admitir, porque novela era coisa de mulher.”

Bastidores e Curiosidades

Janete Clair escreveu a novela sozinha, sem a ajuda de nenhum colaborador. A autora afirmou ter se baseado no romance Os Irmãos Karamazov, de Fiodor Dostoiévski, para a criação dos irmãos Coragem. Inspirou-se, ainda, no livro As Três Faces de Eva, de Corbett H. Thigpen e Hervey M. Checkley, para formar a tripla personalidade de Lara (Glória Menezes). E valeu-se da peça Mãe Coragem, de Bertolt Brecht, para criar o papel de Sinhana (Zilka Sallaberry), a mãe de João (Tarcísio Meira), Jerônimo (Cláudio Cavalcanti) e Duda (Cláudio Marzo).

Irmãos Coragem foi um dos primeiros trabalhos de direção de Milton Gonçalves (1933-2022), que fazia o personagem Braz Canoeiro na novela. O ator já auxiliava Daniel Filho, dirigindo algumas cenas, quando passou a estar ao seu lado na direção da obra.

Glória Menezes precisou se afastar das gravações durante um mês por conta de uma meningite. Mesmo sendo uma das personagens centrais, sua doença não afetou as gravações e o andamento da novela, pois Janete Clair havia escrito por volta de 30 capítulos de frente.

A novela continha diversas cenas de personagens andando a cavalo, porém, segundo Milton Gonçalves, o único que sabia montar realmente era Tarcísio Meira. O ator levou seu próprio animal para as gravações.

Em Irmãos Coragem, foram feitas diversas tramas paralelas, em um claro andamento direcionado a uma renovação da linguagem das telenovelas que começou com Véu de Noiva (1969), também de Janete Clair, e Verão Vermelho (1969), de Dias Gomes. O formato deu a autora grande liberdade para alterar o seu enredo devido a pressão da Censura Federal ou em função de reclamações sobre os rumos de algum personagem.

Juca Cipó (Emiliano Queiróz) e Coronel Pedro Barros (Gilberto Martinho) durante cena da novela. Além do enredo central, tramas paralelas também fizeram muito sucesso no folhetim. (Foto: Reprodução/TV Globo)

Em junho de 1971, o jornal O Globo publicou uma nota onde a Assembleia Legislativa do então estado da Guanabara parabenizava a emissora “pela feliz oportunidade que deram a milhões de telespectadores de assistirem, empolgados e como que participando nos episódios, à novela Irmãos Coragem”.

Irmãos Coragem foi a segunda novela mais longeva na história da teledramaturgia da Globo, com quase um ano no ar (a primeira foi A Grande Mentira, exibida entre 1968 e 1969). Um dos motivos para o grande sucesso da trama foi a união entre bangue-bangue com futebol aliado ao interesse do público masculino pelo folhetim: pela primeira vez, os homens admitiram que assistiam a uma novela.

O par romântico de Glória Menezes ao lado do marido, Tarcísio Meira, dava a novela um trunfo: a possibilidade de beijos reais – algo pouco comum na televisão da época. Enquanto o casal protagonizava seus beijos em Irmãos Coragem, outro casal real, Carlos Alberto e Yoná Magalhães, utilizava o mesmo recurso na novela Simplesmente Maria, da TV Tupi.

De acordo com Daniel Filho, o casal Jerônimo e Potira (Lúcia Alves) foi inspirado no filme Duelo ao Sol (1946), estrelado por Gregory Peck e Jennifer Jones.

Um fato curioso aconteceu durante a novela. Enquanto acontecia uma enchente no Rio de Janeiro, um helicóptero fotografou a cidade cenográfica de Coroado. A imagem foi publicada na primeira página do jornal carioca O Dia, com o título: “O Rio está inundado”. O cenário parecia tão verídico que confundiu os repórteres.

Assim como outras novelas da época, Irmãos Coragem também sofreu com a censura. Embora a obra evidenciasse a luta contra os desmandos de um coronel corrupto, o que deixou os censores mais preocupados não foi o contexto político, mas os costumes. Entre os pontos destacados, o de maior enfoque era o romance de Jerônimo e Potira. A traição, especificamente, foi bastante criticada na ocasião.

Regina Duarte interpretou a doce Ritinha em “Irmãos Coragem”. Papel foi mais um ‘divisor de águas’ na carreira da atriz. (Foto: Reprodução/TV Globo)

Glória Menezes disse em entrevistas que criou um trejeito – um leve estalo com a língua e uma piscadela, para identificar as transformações de Diana em Lara. Esse recurso nada mais era do que um código para o público identificar a transformação da personagem. Ainda, para compor a tripla personalidade de Lara, a autora recorreu à assistência do neurocirurgião Pedro Sampaio.

Em entrevista realizada no programa Conversa com Bial, da TV Globo, em 2020, Tarcísio Meira e Glória Menezes relataram um acontecimento emocionante para os dois. Durante uma procissão de barcos em Salvador, na Bahia, os pescadores chegaram perto deles e começaram a cantar juntos o tema de abertura da novela, “Irmãos Coragem”, eterna na voz de Jair Rodrigues. “Foi uma coisa linda e muito emocionante” afirmou Tarcísio ao que Glória complementou: “Fico até comovida”.

Em setembro de 2013, Cláudio Cavalcanti, aos 73 anos, foi internado para fazer uma cirurgia em uma vértebra, mas acabou evoluindo para insuficiência renal e falência múltipla dos órgãos. Ele também ficou marcado na memória do público pelo seu trabalho na novela “A viagem”, que entrou no Globoplay.

Em 2021, Tarcísio Meira foi o último dos “Irmãos Coragem” a falecer, por conta de complicações devido ao vírus da covid-19. Já haviam partido anos antes, em 2013, Cláudio Cavalcanti, aos 73 anos e Cláudio Marzo, aos 74 anos, em 2015, por complicações de um enfisema pulmonar

Para criar o personagem Duda (Cláudio Marzo), craque do Flamengo, e mostrar os anseios de um rapaz do interior que se transforma em ídolo do futebol, Janete Clair contou com a assessoria do jornalista e comentarista esportivo João Saldanha.

Irmãos Coragem marcou a estreia do diretor Reynaldo Boury na Globo. Ele entrou na equipe para atuar como diretor de TV, fazendo os cortes das cenas. A obra também marcou a estreia de Sônia Braga na emissora e reuniu as duas duplas mais famosas da casa naquele tempo: Tarcísio Meira e Glória Menezes, Cláudio Marzo e Regina Duarte.

Claudio Marzo interpretou o jogador de futebol Duda, o caçula dos irmãos Coragem. Novela foi a primeira que foi assumidamente assistida pelo público masculino. (Foto: Reprodução/TV Globo)

Abertura

A música de abertura, Irmãos Coragem, interpretada por Jair Rodrigues, foi encomendada a Nonato Buzar e Paulinho Tapajós. A letra era tão forte que só foi utilizada no capítulo 31, quando João Coragem encontra o diamante. Antes disso, usava-se apenas a melodia em arranjo instrumental.

Trilha Sonora

Um dos grandes destaques da novela foi a trilha sonora. Irmãos Coragem foi a segunda novela da Globo a possuir trilha original, produzida especificamente para a trama. A produção musical foi produzida por Nelson Motta, que já havia sido responsável pela trilha de Véu de Noiva. Ele criou um repertório que continha músicas originais – como o tema de abertura, “Irmãos Coragem“, que conquistou o país – e interpretações, repetindo o sucesso da novela anterior. Entre as canções que iam de Tim Maia a Villa-Lobos, houve até canja de atores como Regina Duarte, Paulinho Machado e Cláudio Cavalcanti, que cantou a música “Menina”, de Paulinho Nogueira, tema de Jerônimo e Potira. O ator disse que gravou a música por solicitação da autora Janete Clair.

Reprises

A novela foi reapresentada somente duas vezes, de forma resumida, em dois compactos: no Festival 15 Anos da Globo, em janeiro de 1980, e no Festival 25 Anos, em maio de 1990.

Remake

No ano das festividades referentes aos 30 anos da Rede Globo, em 1995, Dias Gomes e Marcílio Moraes realizaram um remake de Irmãos Coragem para as 18h. Nessa segunda versão, Marcos Palmeira, Marcos Winter e Ilya São Paulo interpretaram os irmãos Coragem: João, Duda e Jerônimo, respectivamente. A personagem Lara foi interpretada por Letícia Sabatella; Gabriela Duarte fez Ritinha; e Dira Paes deu vida a Potira. Como a mãe “Coragem” desta versão, Laura Cardoso fez lindamente a “mãe Coragem” Sinhana, papel que lhe rendeu o APCA de melhor atriz em 1995.

Jerônimo (Cláudio Cavalcanti), João (Tarcísio Meira) e Duda (Claudio Marzo) foram os “Irmãos Coragem” do título. Produção até hoje é lembrada como uma das maiores novelas da história. (Foto: Reprodução/TV Globo)

Prêmios

Irmãos Coragem venceu duas categorias no “Troféu Imprensa” realizado em 1970. A história foi contemplada como melhor novela e Regina Duarte venceu como melhor atriz do ano pela personagem Ritinha na obra.

Audiência

Os índices de audiência em quase todos os dias de exibição da trama ultrapassavam os 85% – marca então inédita e um verdadeiro fenômeno de público para uma telenovela na época. Por possuir um enredo repleto de elementos masculinos, pela primeira vez os homens assumiram que assistiam a novela. Sobre isso, Daniel Filho contou em seu livro “Antes que me Esqueçam” sobre a repercussão de Irmãos Coragem: “Acho que foi a primeira vez que uma novela estourou de ponta a ponta no Brasil, atingindo índices fantásticos de audiência. Deu mais audiência que o final da Copa de 70. O jogo foi num domingo, e, no dia seguinte, a audiência da novela foi maior.” Daniel Filho se referiu ao capítulo exibido na segunda-feira do dia 22 de junho de 1970 quando Irmãos Coragem conquistou mais audiência que o jogo entre as seleções do Brasil e da Itália na final da Copa do Mundo do México, no dia anterior (domingo, 21 de junho).

Fontes: Memória Globo, Wikipédia, Teledramaturgia.

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